21/01/2012

O enfeite da mulher mula

Das coisas impressionantes é a capacidade de sustentar o que se tem plena noção de que não é bom. Por ser homem, ainda que em genitália e mente eu seja o oposto, mas é assim que decidiram chamar-nos todos e por isso prossigo, acredito que só nós homens temos essa faculdade, e não ouso botar palavras na boca de um ser que não se defende na língua latina. Creio eu que só mesmo gente -- e no caso, a gente -- consegue permanecer numa decisão ruim. 
No documentário "Jogo de Cena", de Eduardo Coutinho, uma das últimas entrevistas é a de uma menina de olhos meio puxados. Ela conta que, com 11 anos, parou de falar com o pai após uma briga, que culminou num infarto. Misturada de medo e raiva do pai, mesmo morando na mesma casa, a menina não lhe dirigiu mais a palavra. Ele não entendeu, e tentou romper o silêncio dela -- há um momento emocionante em que ela fala do choro dele, que só viu essa única vez. Depois de um tempo, "desistiu de mim", e conviveram cerca de cinco anos sem se falar. Até o dia em que o pai, como todos os pais e todos os homens e plantas e animais, desencarnou. Coutinho pergunta, com a voz rouquíssima, "Mas você não se arrependia? Não tinha vontade de voltar atrás, falar com ele?", ao passo que ela respondeu, e eu a entendo de todo o coração, "Eu sabia que fazia algo ruim, mas simplesmente não conseguia mais falar com ele depois de um certo ponto". 
Muitas vezes me vejo nessa mesma ação, fazendo ou persistindo em algo que sei que não é bom, e não é porque acredito que aquilo compensará, ou que o caminho é dolorido para a redenção final -- eu simplesmente sei que não há, em qualquer momento, qualquer honra naquilo, e que estou trabalhando com as ferramentas do tédio e da temperança, e que nada sairá daquelas cânforas que jamais vertem água. E mesmo tendo noção de tudo isso, prosseguimos. Muitas vezes, quando devemos ser fortes como elefantes, e prosseguir de fato, heróicamente, empacamos como mulas. Porque oscilamos entre o elefante e a mula, e porque contemos elefante e mula, mas nos falta o discernimento da transformação?
Me identifico mais com a mula no momento. Uma mula empacada, é o que sou. E todos me pedem pra ter calma, até mesmo as cartas. A única coisa que corre no momento é o oráculo, de resto, tudo é espera, tudo é tempo, tudo é mula empacada. Só posso fazer sentar e esperar, vendo o céu mudar de cor, viver com a sensação de que há uma decisão a ser tomada mas que não há, ainda, voz de comando. 

Hoje a tarde, quando fui ao mercado na cidade baixa, encontrei uma baiana que faz máscaras e guias de orixás, que já conheço de outras temporadas. Ela me deu uma pulseira de Iansã, que estou usando até agora. Mula empacada adornada, pra lembrar que quando parar de ser mula, é mulher.

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