09/01/2012

BEGÔNIA SUPER STAR (conto)

Genivaldo usava colete verde musgo de pano grosso mesmo no calor. Trabalhava dia e véspera de natal e trabalharia naquele dia 31 até o último cliente, e no dia seguinte meio período -- dia primeiro de um ano igual. Genivaldo era vendedor do quiosque de flores da Aníbal de Mendonça com Visconde de Pirajá. De segunda a sábado, de 9 as 19h, feriados, natais, últimos e primeiros dias de novos anos iguais. Mesmo no auge do calor carioca, recusava-se a cortar os longos cabelos lisos, que prendia num boné, vestia o colete verde musgo de pano grosso e vendia flores caras a homens que só compreendiam o desejo imediato de suas mulheres. 
Orquídeas estavam em alta naquele verão. O patrão de Genivaldo havia descoberto um novo fornecedor e o quiosque tinha a maior variedade do bairro -- até aquelas que parecem de mentira, em azuis de aquarela ou roxas com amarelo. Genivaldo compreendia as orquídeas, mas preferia as bromélias; grandes, pontudas e coloridas, como a explosão de fogos da árvore da Lagoa ou do reveillon de Copacabana, só que saindo de um caule verde comprido.

Toda semana, o mordomo de uma senhora da Vieira Souto ia ao quiosque comprar um girassol gigante. A senhora amava girassóis, mas não tinha muito jeito com plantas ou coisas vivas, e pro fim da semana lá ia o mordomo substituí-lo. Genivaldo se perguntava se ela também matava outras coisas, ou se alguém nesse mundo acreditaria na imortalidade de um girassol. "O Brasil já era gigante, que dirá o mundo", pensava. 
Quando veio ainda pequeno da Paraíba, conheceu um pedaço dessa imensidão. O pai, Genésio, degolou um homem e saiu fugido e jurado de lá, deixando mulher e filho. Foi pro Rio de Janeiro, arranjou emprego de pedreiro, economizou o dinheiro do ônibus e mandou pra Mãezinha, que veio com bebê Genivaldo debaixo do braço. Esse nem pagou passagem, de tão miúdo. A sucata da linha Estrela Brilhante cruzou Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo até o Rio. O barraco de Genésio ficava na maior favela do país, um mirante superpopuloso no bairro de São Conrado, onde muitos nordestinos fincaram suas enxadas. Quando Mãezinha chegou, Genésio já tinha casado de novo e feito outro filho pequeno um ano mais novo que Genivaldo, batizado Geniclei. E como a família nordestina é um mistério, as duas mulheres e quatro crianças viviam debaixo da mesma laje, e conviviam bem. Todo mundo tinha emprego e tomava café-da-manhã junto. 
A prosa correu bem até os 13 anos do mais velho e 12 do menor. Geniclei, que a vida inteira teve Genivaldo como herói, passou a bradar dentro de casa, "É viado!". E a cada vez que bradava, os dois apanhavam de chinela de couro. "Calúnia, abestado! Aqui não se fala essa palavra!". Mas a dor não continha Geniclei, e os gritos enchiam o cômodo num crescendo. Um dia, aos 18 anos, Genivaldo pôs-se de pé, mão na cintura, e berrou: "Sou viado sim!".
"Então meta o pé senão lhe degolo", respondeu o pai. 
"Num falei? É viado sim, sempre foi viado". "Cala a boca, abestado", e meteu-lhe a chinela de couro.
Genivaldo bateu a porta e foi embora. Nunca mais voltou. Cinco anos depois, meteu os longos cabelos lisos dentro de um boné, vestiu o colete grosso verde-musgo do quiosque da Aníbal e passou a atender senhores incompreendidos. 

"O girassol", apontava o mordomo. Era sempre a mesma coisa. Nunca perguntava o nome de Genivaldo, nem dava abertura para conversa. Pagava sempre em dinheiro. Era um homem interessante, o mordomo. Mulato claro, olho cor de mel. Debaixo da camisa de linho fechada até o colarinho, dava pra traçar a curva do ombro musculoso. Tinha uns 38, no máximo. A postura era impecável. Como o diabo era bonito. Ainda mais vestido daquele jeito. Genivaldo ficava todo ouriçado quando ele chegava, mas não dava pinta. Aprendeu que viado é degolado, e com as mãos gigantes do mordomo seria fácil. Mas dessa vez, antes de completar a semana, volta o diabo claro. "O girassol morreu antes. Fez menos de 7 dias. Tu me vendeu diferente? O outro não durava menos que isso". 
Genivaldo não sabia o que dizer. Devia ser culpa da assassina de girassóis. A planta era a mesma. Não queria parecer burro nem destratar a senhora, afinal, ela era cliente fiel -- ainda que não soubesse. "Vou te dar um que vai durar duas semanas", disse Genivaldo, num arremedo. 
"E isso sai quanto?"
"Sai nada. Esse é brinde. E se o próximo durar menos que duas semanas, também sai de graça".
O mordomo não se convenceu, mas pegou o vaso de sobrancelha erguida e saiu atravessando a rua. Genivaldo respirou fundo e, sorrindo, pegou o borrifador -- precisava refrescar as rosas e o dia estava quente. 

Duas semanas depois, o mordomo retorna. 
"Aconteceu mesmo! O girassol durou duas semanas! Quero outro desse!"
"Outro desse não tem"
"Como não tem?!"
Genivaldo percebeu que tinha o controle do diabo claro. "É que esse adubo sou eu que faço, e não consigo fazer sozinho. O camarada que me ajuda não tá mais aqui. Preciso de ajuda pra fazer", e emendou no que já sabia deixar o mordomo louco,  "Mas ó, tem outro, daquele normal, que dura só uma semana. Esse você pode levar agora mesmo".
"Não, não, quero do outro! Esse aí morre cada vez mais rápido!", o mordomo se afobou. "E se eu ajudar? Eu posso ajudar. Saio da senhora hoje as 21h. Aí venho aqui e te ajudo. Preciso poupar dinheiro. Serve eu ajudar?!"
"Serve, só preciso de alguém pra triturar e misturar tudo". E com esses braços fortes, pensou Genivaldo, dando um suspiro.

No barraco onde as duas mulheres criavam suas crianças, a vida era calma. 
Enquanto Genésio, que tinha dois empregos, e a mãe de Geniclei saíam com o filho mais novo as 6h da manhã, Mãezinha só pegava no serviço as 11h. De barraco vazio, Mãezinha botava bebê Genivaldo na cama onde dormiam os três adultos e ia tomar banho. Repetia o ritual diariamente, e bebê Genivaldo, com vista para o chuveiro improvisado, observava quietinho. Desde muito cedo compreendia a importância daquele momento, embora apenas anos depois fosse de fato compreendê-lo. 
Mãezinha, dividindo o marido com outra mulher, aprendeu que paz e desejo andam juntos. Nordestina cheia de mandinga, não dava ponto sem nó. Sob o olhar curioso do filho, ficava nuazinha, sem brinco nem grampo. Entoava a canção de Santa Lurdinha dos Evoés e tirava da bolsa uma dobradura de jornal. Puxava um balde raso debaixo da cama, enchia d'água e abria delicadamente a dobradura, revelando o conteúdo de lindas e perfumadas begônias cor-de-rosa. Desfazia as flores no balde d'água, cantando. Depois, com a lentidão da solenidade, virava um pouco da água de begônia na cabeça. As pétalas que grudavam no rosto, botava na boca e engolia. Pegava mais algumas e passava nos dentes, lábios e cílios. Entoando sem parar a canção de Santa Lurdinha, com voz aguda e cheia de sotaque, pegava mais pétalas e passava lentamente no bico dos seios e no ventre. Mais um punhado e levava a vagina, passando por dentro e por fora. Selecionava cuidadosamente uma pétala inteira, grande e resistente, e descia pelas nádegas -- a parte mais demorada do ritual. Chegava a repetir a música duas ou três vezes enquanto a grande pétala de begônia passeava lentamente por seu ânus. Por fim, virava o balde até a última gota, e as pétalas remanescentes eram esfregadas atrás dos joelhos, axilas e orelhas. 
Bebê Genivaldo primeiro tinha medo, depois achava lindo de ver. Mãezinha morena jambo, na luz escura das paredes de cimento do barraco, nua nua, o peito pequeno de mamilos grandes, as pernas bem torneadas, pele vestida de flor, cheiro de begônia -- cheiro de mãe. Quando acabava, paz e silêncio. Foi assim até o dia que bateu a porta e nunca mais voltou.
Mãezinha enlouquecia os homens, e não era só o pai Genésio. Nunca usou perfume nem sutiã -- seu único amuleto era o banho de begônia. E quando o pai chegava em casa, meia-noite, louco de cansado, jogava uns trocados pra mãe de Geniclei e mandava levar as crianças pra tomar refrigerante. Botava-os porta afora, apressado, e da rua se ouviam as risadas. 
De filho, Mãezinha só teve Genivaldo. Nunca engravidou de outra criança nem deitou filho nenhum naquela vida.

Genivaldo observava as begônias do quiosque. Pendurou o colete atrás da porta, meteu um vaso na mochila e saiu. Correu pra casa, entrou no chuveiro e entoou Santa Lurdinha. Achou por bem trocar o boné antes de sair.
21h, já de volta ao local, deixou só a porta aberta. O mordomo deu dois toques anunciatórios e saiu entrando, calça, sapato social e regata branca. O braço, que segurava o cabide por trás do ombro com o blusão de linho do uniforme, era mais forte do que Genivaldo havia imaginado. "Ai, minha Santa Lurdinha dos Evoés". 
Pousou o cabide na cadeira. "Então, como que faz o negócio aí?"
Genivaldo, que de alquimista não tinha nada, improvisou. Pegou um vaso pequeno e recolheu alguns saquinhos de sementes germinadas. Pediu pro mordomo botar o triturador em cima da mesa, coisa que ninguém jamais fazia, por peso e preguiça. "Cuidado aí", advertência sem resposta. Pediu que abrisse o saco de terra e de adubo. Em seguida, triturou as sementes e jogou no vaso. "Meus braços não são fortes, não consigo mexer", e deu uma pá pequena na mão do mordomo. A cada volta de braço que dava, roçava no ombro de Genivaldo. Ficaram nessa uns quinze minutos, e o mordomo começava a inquietar-se. "Demora tudo isso?". Genivaldo então, pressentindo o momento final, tirou do bolso um pequeno saquinho de pó branco triturado. "Isso aqui é um fortificante, segredo meu. Agora, segredo nosso", e derramou aspirina triturada naquele adubo, técnica que aprendeu quando ia entregar flores em sets de filmagem. "Pronto, acabou", disse enquanto invocava Santa Lurdinha. O mordomo olhou pra ele com brutalidade, pá em riste, e perguntou: "Tu é viado, é?". "Sou sim", disse Genivaldo, "Mas sou filho de degolador também". 
O mordomo largou a pá e agarrou Genivaldo com os dois braços, com a força do coveiro que levanta terra pra enterrar defunto. E no fluxo das intimidades, tirou-lhe o boné, libertando seus longos cabelos lisos.

Minutos depois, um rasgo de luz artificial invade o quiosque. A porta aberta revela o filho do dono acompanhado de uma quenga, que deu um grito. "Mas que porra é essa???". Abotoaram as calças, em choque. 
"Que porra é essa?! Que porra é essa aqui?!!! Quem é você?!?!".
O mordomo pegou o uniforme e fugiu, quase derrubando a quenga. Só ficou Genivaldo, com cara de prazer e susto. 
"Aí Genivaldo… Tu é viado?".
"Sou", respondeu. "Sou sim."
"Então vaza daqui, viado! Que nojo. Que nojo!!", e saiu puxando a quenga. Genivaldo ainda ouviu a mulher falar, baixinho, voz ventando longe, "Então a gente não vai mais trepar com cheiro de flor?".

Sem emprego, Genivaldo chorou e rezou pra Mãezinha, já falecida. Mãezinha adorava ter filho viado. Quando morreu, deixou tudo pra ele. Eram do mesmo tamanho, pé e manequim. Os chinelos serviam, assim como as casacas e calças de algodão. Mas ele gostava mesmo era dos vestidos. 
Genivaldo abriu o armário e enfiou o nariz nos vestidos dela. Cheiro de begônia. Cheiro de mãe. Começou a cantar uma música da Marisa Monte. Amava Marisa Monte. Viu uma foto dela na revista com um monte de flor no cabelo e na roupa. Que linda era Marisa Monte. Na verdade era feia, mas tinha a voz tão bonita que ficava linda.
Quando estava muito triste ou muito feliz, gostava de cantar Marisa Monte enquanto abria o estojo de maquiagem da mãe. Ligou a lâmpada do espelho e começou a traçar uma boca vermelha. Passou o corretivo, depois a sombra turquesa com prateado. Mirou-se. No espelho, um ser dismórfico, meio monstro. Não era Genivaldo, embora tivesse um Genivaldo ali. Suspirou. Algo reluzia na gaveta, ricocheteava na lâmpada. Uma lâmina, meio velha. Será que funcionava?
Pegou a lâmina e olhou bem pra ela. Teria coragem? Sim, teria. E num ato heróico, raspou fora as sobrancelhas. 
Mirou-se novamente. Recriou-as com dois riscos negros curvadíssimos. Descobriu os olhos realmente puxados. "Bem que todo mundo dizia". Aplicou delineador e cílios postiços. Não foi necessário fazer a barba. Pêlo, sempre teve pouco. Viado de sorte.
Olhou os vestidos pendurados e tirou o vermelho justíssimo de helanca e paetês. Vestido de gala. Vestiu. Lindo. E como era fresco, decotado. "Só falta o busto!". Tirou da gaveta o sutiã lilás das ocasiões especiais de Mãezinha e encheu com um pouco de algodão. Não queria que ficasse grande. Médio pra pequeno, que nem o da mãe -- e o da Marisa Monte. Enfiou o pé na sandália prateada de salto quadrado. Mas ainda não estava pronto. 
Não era mais Genivaldo, nem Genivaldo de Mãezinha. Penteou os cabelos pra frente, esqueceu-se como eram compridos. Pegou a lâmina e degolou os cabelos perto da raiz. Fez uma franja desfiada e pontuda. Pegou as flores de begônia e fez no cabelo o maior arranjo que já viu. 

No dia primeiro de todo ano igual, o comércio abria meio período. As noites eram iguais as noites dos anos que passaram. As ruas da Lapa continuavam cheias. Genivaldo desfilava pela calçada do Lavradio e as mulheres viravam para olhar seus lindos cabelos floridos. Os homens passeavam os olhos no seu corpo magro e chamativo embrulhado em tecido vermelho reluzente. Virando ali, no Buraco da Lacraia, viu de longe o pisca-pisca do karaokê. 
Na entrada, o porteiro, comanda na mão, olhou Genivaldo de cima a baixo. "Veio fazer show?"
"Como?"
"Veio fazer show. Aqui. Hoje. Você não é o traveco do show?"
"Não sou traveco não"
"Tu é o que então?"
Pausa.
"Sou cantora"
"Cantora?"
"É. Cantora. Meu nome é Begônia Super Star"

O porteiro anotou o nome na comanda, e ao lado escreveu em letras garrafais: CORTESIA.

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