30/03/2012

HEY, YOU




Há um outro mundo chamado THE WALL. 
Não é um projeto musical. É um ecossistema com governo e emoções próprias. Bandeiras próprias. Reações próprias.
Ontem, vesti minhas botas de combate cor-de-sangue e entrei em The Wall, como um soldado. Não consigo não me sentir um soldado quando escuto e vejo The Wall. É um grito de reaja!, reaja!, reaja!, em forma de música.

Metrô lotado até a Central do Brasil, há muito tempo você não esbarrava comigo. Já entrei muito em vagão lotado em horário de pico. Foi um sofrimento até pensar que tinha gente que vivia isso todo dia a vida inteira, e que essas pessoas nem podiam se dar ao luxo de ter um ataque de pânico. Aí relaxei, entendi que era isso aí. Ontem repeti a sensação. Fãs de Pink Floyd uniformizados se espremiam com trabalhadores do dia-a-dia. Cabelos compridos e cabelos com gomalina no mesmo vagão. Tentei tranquilizar o próximo, que não estava acostumado. Sei que dá pânico, mas ei, tamo junto. E ainda temos um trem pra pegar.
Central do Brasil 19h50 da noite, borbulhando. Mais fãs. Minhas botas de combate cor-de-sangue chamam atenção. Está um pouco quente, mas preciso usá-las. O trem especial rumo a The Wall contrasta com o trem comum azul turquesa que repousa ao lado. O trem especial tem ar condicionado, o outro não. Dá pra ver as janelas e bancos quebrados, a sujeira, cartazes rasgados. Deu uma tristeza. Foda. Uma voz microfonada diz, "Bem-vindos ao vagão especial para o show de Rogers Waters!". As pessoas vibram. Que merda. Próxima estação, Engenho de Dentro. 
A sensação de estar num vagão com centenas de fãs e trilhares de emoções e expectativas é sufocante. A preocupação com o horário é latente. Nós somos gado. Não dá pra dar um passo de um metro, a gente vai marchando, não que nem soldado, mas que nem condenado. Subindo a escada, descendo a rampa, entrando na fila. A fila. Pra isso servem as botas de combate. Não queira furar a minha frente, amigo. Eu sei que você tá tenso, eu também tô, mas aqui não, e não duvide. Fui atraída para um coroa grande e forte, que berrava com voz grossa, "Oi, você tá furando fila não né? Porque pra mim, quem fura é babaca. Ba-ba-ca!". Colei nas costas do coroa. E ninguém, mas ninguém, ousou entrar na nossa frente. 
Estamos dentro. Estamos dentro. Muros brancos cercam o palco. Estamos dentro de The Wall.

Não é a primeira vez que vejo Roger Waters no palco, mas é a primeira vez que vou ver a parede ruir. Não era nem nascida quando a idéia foi concebida. The Wall é mais velho que eu.
Então soam os primeiros acordes, e um avião vem por trás de nossas cabeças, e BUM
O que posso dizer de ver um filme-ópera-rock transformado em show ao vivo, potente? Use sua imaginação e faça uma lista de todos os adjetivos que houverem no seu cérebro. Foi exatamente isso aí.

Muita coisa acontece quando aos 13 anos você se identifica brutalmente com Another Brick In The Wall. Muita coisa. E tudo está relacionado a resistência. Meu pai tinha o vinil, que agora é meu, e eu cantava essa melodia pro meu coelho -- e acho que ele gostava. Essa foi a primeira música que aprendi a tocar na bateria, um pedido ao meu professor jazzista. Era o que eu escutava todo dia, no discman, a caminho da escola. Só essa música. Não conseguia muito ouvir o disco inteiro, confesso, porque era barulhenta demais. Gostava de punk e hardcore. Aqueles arranjos melancólicos eram difíceis. Ouvia muito de vez em quando, desenhando, escrevendo... Mas a caminho da escola, era só ela. A música fragmentada pelas lombadas do caminho, o cd pulava e pulava, e eu sabia tudo de cór. E quando eu ia pra escola, de preto, rasgada, levava isso as últimas consequências (e isso incluía, no mundo adolescente, escrever a letra no tênis). Até o momento crítico em que fui repetida de ano porque precisava "amaciar", e eles achavam que isso funcionaria. Mas eu era emancipada, e fui fazer dois supletivos. O do 2o e 3o ano. Fiz vestibular e passei em 50o lugar geral. Bom pra caralho. Entrei pro que eu achava que queria, de primeira, mas não sobrevivi dois anos ali porque we don't need no education... o resto é história.

Esse continua sendo meu mote, a diferença é que a educação se transferiu para O RESTO DO MUNDO. Voltei pra faculdade, agora estudo Psicologia a noite. Estudo mais um monte de coisas. É como se eu fizesse várias faculdades paralelas. Eu gosto. Preciso. Mas não vejo mais professores como inibidores de criatividade, castradores de pensamento. Também não quero destruí-los, não quero procurar erros em seus métodos e jogar isso na cara deles (eu fazia isso, e já me fodi muito, muito mesmo). Acho que fui agressiva demais no colégio, não quero repetir isso. Quero usar a faculdade a meu favor. Quero me educar sim, para poder fazer o que fiz ontem. 

Eles nos deseducam a achar que não temos voz ou poder. Mas temos, especialmente quando gritamos juntos. No meio daquele estádio imenso, música alta, palco tingido de vermelho, eu absorta pelo espetáculo, escuto do meu namorado-marido que cinco seguranças, de terno e gravata, estão há 10 minutos falando alguma coisa com um garoto que fumava maconha. Achei estranho. Nenhuma repreensão dura 10 minutos. Podiam estar sendo extorquidos, ou humilhados. Percebi que todos a minha volta olhavam apreensivos. Olhei pro porco inflável que começava a voar pelo palco e comecei a gritar, no melhor estilo kamikaze, em direção aos seguranças, que estavam a menos de dois metros de mim, "PORCOS FARDADOS! PORCOS FARDADOS! FORA, PORCOS FARDADOS!". Eles começaram a olhar, não acreditando. Que nem uma louca, gritei e bati palmas. Os caras do lado começaram a fazer coro. As pessoas começaram a se empolgar. Em poucos segundos, uma galera começou a gritar e a mandar os seguranças darem o fora. A maioria homens, gritando grosso. Os engravatados, diante da pressão popular, saíram de fininho, em fila indiana. A multidão vibrou, o garoto e a namorada agradeceram muito. 
Consegui uma carona pra ir embora e acabei dando meus bilhetes de metrô e trem pra eles.

Isso agora é o que eu faço com o que titio Waters me ensinou em The Wall. Kamikaze como um piloto que dirige um avião e o choca contra um muro segregador. Prazer em ser kamikaze. Prazer em usar o sistema contra ele próprio, porque ele fabrica provas contra si mesmo o tempo inteiro. Prazer de ser inteligente e reconhecer o que há de bom e lutar contra o que há de ruim. Prazer de saber que não devo nada.
Isso é The Wall.



Hey You (Pink Floyd)

Hey you
Out there in the cold
Getting lonely, getting old
Can you feel me?
Hey you
Standing in the aisle
With itchy feet and fading smile
Can you feel me?
Hey you
Don't help them to bury the light
Don't give in, without a fight
Hey you
Out there on your own
Sitting naked by the phone
Would you touch me?
Hey you
With your ear against the wall
Waiting for someone to call out
Would you touch me?
Hey you
Would you help me to carry the stone?
Open your heart, I'm coming home
But it was only, fantasy
The wall was too high, as you can see
No matter how he tried, he could not break free
And the worms ate into his brain
Hey you
Out there on the road
Always doing what you're told
Can you help me?
Hey you
Out there beyond the wall
Breaking bottles in the hall
Can you help me?
Hey you
Don't tell me there's no hope at all
Together we stand, divided we fall

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