10/08/2012

Jantar com o prefeito

Originalmente publicado aqui.



Alguns convites são a porta de entrada de uma complexa construção de questionamentos. Por isso, quando fui convidada para jantar com o prefeito no clube de cavalos da cidade, entendi que era momento de reavaliar os rumos que a vida tomou.
No táxi, com minha grande amiga heroína de Dante, compartilhamos a saudade, elogiamos a roupa uma da outra e nos contemplamos num silêncio eremita. Depois, explodimos em histeria. Rimos do deslocamento, do quanto éramos politicamente dicotômicas, da fome que apresentava seus primeiros sinais. Aí começamos a desconfiar da situação. Sou escritora. Ela é produtora. Temos 24 anos e sapatos exóticos. Não temos nada a ver com o prefeito. Sequer votamos nele. O nervosismo ria de nós. E se ficarmos perto demais? O que vou dizer? Sou um touro numa loja de porcelana. Beatriceé pior, tem um senso de justiça apuradíssimo e compra brigas napoleônicas por causa disso. Eu a admiro.
Duas mocinhas sendo acometidas por um surto de sinceridade esquizofrênica. O taxista nos observa pelo espelho. Me dou conta de que há um terceiro corpo naquele espaço. Expusemos demais. Resolvo puxar conversa. Toura. Moço, desculpe, não perguntei seu nome. “Rodolfo”, ou “Tô louco pra essas duas imbecis saírem daqui, essas apoiadoras do prefeito, essas mamadoras de teta”. Luta de classes dentro do táxi. Talvez eu devesse fazer um comentário positivo sobre Marx. Ou sobre o Flamengo. “E o Flamengo, hein?”. Ele solta um resmungo. Talvez seja Fluminense. Beatrice desceu do céu e agora me acompanhava no purgatório.
Estávamos numa cilada. O arrependimento amarga. Pagamos o taximarxista e caminhamos sob o holofote da lua cheia com nossos saltinhos enfiados na areiado hipódromo vazio. A fila de carros descarregava pessoas de pescoço duro enroladas em panos caros que eram abordadas por um segurança monotemático que pergunta “Jantar do senhor prefeito?” e dá um sorriso em forma de seta à esquerda. Subimos a escada de madeira com vista para um aquário de senhorinhas da quarta idade que faziam abdominais com as frontes suadas. Um sorriso de tailleur preto pergunta nossos nomes. Nossos nomes? Bem, meu nome pode ser vários. Pode estar como Duda, como Maria Eduarda, só como Eduarda ou só como Maria, não sei, Beatrice, você sabe como está meu nome? O dela é só Beatrice. Beatrice o que? Ah podem ser vários, eu tenho três sobrenomes, pode ser Jordão, pode ser… OK, tudo bem, sejam bem-vindas. Não havia tempo para surtos de sinceridade aqui.
O jantar não era pequeno, e ao mesmo tempo havia gente demais. Parecia… um casamento. Garçons, música, iluminação, flores brancas, grandes mesas redondascongregatórias com uma profusão de talheres e guardanapos de pano. Todos tilintavam esperando o prefeito chegar. Eu e Beatrice girávamos sobre o próprio eixo procurando nós mesmas dentro daquele lugar. Então, fomos recepcionadas pelo cara que nos convidou – o cara mais simpático do mundo. A pedra fundamental do fim de nossas dúvidas e inseguranças. Ele nos acomodou junto de sua mãe, uma das senhoras mais bonitas que já vi. Não era de aparência solar; tinha uma beleza infernal, cabelos e sobrancelhas negríssimas, olhar distante e ombros eretos. Ela nos cumprimentou como só uma mulher madura e deslumbrante pode fazê-lo. Nos agarramos às nossas bolsinhas e sentamos a uma cadeira de distância dela, para evitar o tête-à-tête.
Engolia uns rolinhos de cordeiro quando o cara mais simpático me trouxe uma taça de vinho branco e senti aquela quentura do cavalheirismo de um homem. Beatrice percebe. Beatrice ri. Beatrice diz que falta apenas 1 mês para ela poder voltar a beber. Ela fez uma promessa, e falta pouco. Meu deus, Beatrice, e se esse povo descobrir que somos duas macumbeiras?
Meu status é meio bêbada quando o prefeito aterrisa sob aplausos. O casamento acabou. Estou num evento político. Ele cumprimenta um a um. O que eu vou falar? O que você vai falar? Primeiro, largue a taça. Levanto e quase derrubo a mesa, a bolsa, a Beatrice. Cumprimento-o com dois beijinhos e um aperto de mão. A pele é boa. O cabelo está bem arrumado. Ele está em alfa. Presente, mas ausente. Seguro. Curtindo. Poder é um troço doido.
Começa o discurso. Amigos dão depoimentos sobre o prefeito homem e o prefeito prefeito, mas não consegui ver ninguém pois havia muita gente na minha frente e o vinho amoleceu as pernas. Só escuto vozes. Começo a olhar a cara e a bunda das pessoas. Cara-bunda, cara-bunda, cara-bunda. O homem da frente tem um defeito bem na bunda do terno. Uma mulher usava um vestido preto vulgar, sem sutiã, salto altíssimo e conjunto da obra que deixa a bunda proeminente. Futura musa do mensalão. Aquele cara do Afroreggae não parecia muito feliz. Não vejo artistas aqui, ao menos não conhecidos. Encontro o ex marido de uma conhecida que já ostenta nova mulher altíssima. Ela ri das piadas do prefeito. Ele gosta que ela ria. O cara mais simpático abraça a mãe beleza infernal. Ele parece um pouco o prefeito. Na verdade, acho que ele quer ser prefeito. Se a eleição fosse ali, naquele momento, votaria nele. Fico pensando em quem sonha ser político. É um pouco como quem sonha ser cantor, ou ator. Tem que gostar de público, tem que gostar de si mesmo na frente do público. Se eu fosse político, só falaria via rádio. Odeio aparecer. Mas gosto de me vestir. Isso não é necessariamente a mesma coisa.
Beatrice mexe no seu celular multifunções. Me sirvo da massa de abóbora com molho branco e queijo parmesão. Acabo de sair de uma intoxicação alimentar horrorosa. Na verdade, acho que evacuei a mim própria e iniciei uma nova existência. Ainda estou me acostumando. Beatrice serviu-se de bife e batatas redondas. A comida estava bonita.
Após o jantar, cara mais simpático faz a pergunta derradeira. “E aí, vão votar nele?”. Digo que as batatas estão boas. Ele começa a falar. Falar de índices, números. Respeitosamente escuto. Gosto do cara. Dá até vontade de votar  no prefeito dele, tão nobre e bonito. Esse é o meu problema. Me apaixono por histórias e relatos. Pra mim, todo mundo é personagem. O prefeito vem se despedir. Agradeço o jantar. Lembro que o prefeito é de verdade. Que o jantar é por causa do prefeito de verdade. Que a eleição é de verdade, que a cidade que vivo é de verdade. Na verdade, cara, acho que você pode ficar confiante, porque seu prefeito provavelmente será eleito. Ele é a única alternativa concreta no momento. Entende? Mas obrigada pelo convite, mesmo. Foi ótimo.
Aperto sua mão com um sorriso mecânico, e ele me responde com outro sorriso mecânico e um brilho de desapontamento nos olhos.

Esse é o nosso problema, cara. Surtos de sinceridade. Eu te perdôo e você me perdoa. Nós não conseguimos esconder o brilho de desapontamento dos nossos olhos.

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