21/01/2012

O enfeite da mulher mula

Das coisas impressionantes é a capacidade de sustentar o que se tem plena noção de que não é bom. Por ser homem, ainda que em genitália e mente eu seja o oposto, mas é assim que decidiram chamar-nos todos e por isso prossigo, acredito que só nós homens temos essa faculdade, e não ouso botar palavras na boca de um ser que não se defende na língua latina. Creio eu que só mesmo gente -- e no caso, a gente -- consegue permanecer numa decisão ruim. 
No documentário "Jogo de Cena", de Eduardo Coutinho, uma das últimas entrevistas é a de uma menina de olhos meio puxados. Ela conta que, com 11 anos, parou de falar com o pai após uma briga, que culminou num infarto. Misturada de medo e raiva do pai, mesmo morando na mesma casa, a menina não lhe dirigiu mais a palavra. Ele não entendeu, e tentou romper o silêncio dela -- há um momento emocionante em que ela fala do choro dele, que só viu essa única vez. Depois de um tempo, "desistiu de mim", e conviveram cerca de cinco anos sem se falar. Até o dia em que o pai, como todos os pais e todos os homens e plantas e animais, desencarnou. Coutinho pergunta, com a voz rouquíssima, "Mas você não se arrependia? Não tinha vontade de voltar atrás, falar com ele?", ao passo que ela respondeu, e eu a entendo de todo o coração, "Eu sabia que fazia algo ruim, mas simplesmente não conseguia mais falar com ele depois de um certo ponto". 
Muitas vezes me vejo nessa mesma ação, fazendo ou persistindo em algo que sei que não é bom, e não é porque acredito que aquilo compensará, ou que o caminho é dolorido para a redenção final -- eu simplesmente sei que não há, em qualquer momento, qualquer honra naquilo, e que estou trabalhando com as ferramentas do tédio e da temperança, e que nada sairá daquelas cânforas que jamais vertem água. E mesmo tendo noção de tudo isso, prosseguimos. Muitas vezes, quando devemos ser fortes como elefantes, e prosseguir de fato, heróicamente, empacamos como mulas. Porque oscilamos entre o elefante e a mula, e porque contemos elefante e mula, mas nos falta o discernimento da transformação?
Me identifico mais com a mula no momento. Uma mula empacada, é o que sou. E todos me pedem pra ter calma, até mesmo as cartas. A única coisa que corre no momento é o oráculo, de resto, tudo é espera, tudo é tempo, tudo é mula empacada. Só posso fazer sentar e esperar, vendo o céu mudar de cor, viver com a sensação de que há uma decisão a ser tomada mas que não há, ainda, voz de comando. 

Hoje a tarde, quando fui ao mercado na cidade baixa, encontrei uma baiana que faz máscaras e guias de orixás, que já conheço de outras temporadas. Ela me deu uma pulseira de Iansã, que estou usando até agora. Mula empacada adornada, pra lembrar que quando parar de ser mula, é mulher.

20/01/2012

Minha Bahia de todos os santos




Tô na Bahia.
Tenho cara de baiana? ôxi. Será que alguém em pleno 2012 ainda acredita em cara?
"Fulano tem cara de".
Nossa cara já se misturou há muito tempo! Esses dois ólhinhos (da música dos Novos Baianos, com aquele sótáque de Baby) vêem uma menina branca, mas essa menina é branca falsa.
Ah, se tudo fosse cara. Mas como não é...

Minha amada Salvador...
O que acontece comigo nessa terra, sei dizer não.

Abri a Folha de São Paulo e, no verso do caderno de cultura, uma crônica da Fernanda Torres chamada "Homus Bahianus". Achei o título genial, porque só quem convive com o homus bahianus sabe o que é. Não tem povo igual ao baiano -- e todo o meu vômito de repugnância aos que usam o termo "baiano" pra falar de uma coisa ruim. Coisa de gente que nunca foi pra Bahia. Meus pêsames.

A crônica diz, "É mesmo impossível negar a fé na Bahia", e nunca ninguém disse tão bem o que eu sentia.
O primeiro eureka da minha relação com a Bahia veio numa entrevista do Pierre Verger. Ele explicava porque escolheu o estado brasileiro pra morar, e aí eu comecei a entender, com letras e verbos, todo o meu amor. Verger nasceu em 1902, na cidade luz Paris. Como fotógrafo jornalístico, rodou o mundo inteiro, e parou em Salvador (lá pelos anos 50). Justificando a mudança definitiva pra cá, Verger disse que não há nenhum lugar no mundo como a Bahia. Aqui o negro vive como é, sem a opressão e o preconceito. Aqui o negro é tal qual o é na África -- está em casa, inteiro. Só na Bahia se vê isso. Quando li, arrepiei inteira. Pela primeira vez na vida, entendi que a paz que sinto aqui em muito se dá pelas cordas frouxas dessa não tensão racial, que está tão impregnada nas ruas da minha cidade. Isso já muda tudo, e é apenas uma parte.
Junto com a questão levantada por Verger, vem a frase de Fernanda Torres. Quem vem pra cá é pra dar de cara com a sua fé. Foi aqui que descobri a minha, foi aqui que tudo começou pra mim. Muito antes d'eu saber de fato, e antes d'eu assumir, já fui chamada, na xinxa mesmo. "E aí, qual vai ser", me encaram as mangueiras. Aqui adotei um boxer e o vi morrer abruptamente com pouca idade, provei a comida que mais amo no mundo, descobri que minha cor é vermelha e que não adianta fugir do oculto. Aqui descobri a música, o alimento da alma e da barriga. Tudo aqui.

Essa terra é abençoada, e com toda a verdade do mundo se chama Bahia de todos os santos.

Talvez eu passe aqui uma longa temporada, se houver possibilidade, e se os deuses e santos permitirem... Porque aqui tudo é assim. Se você deseja e merece, a manga cai no teu pé. E você agradece pro céu.

19/01/2012

Sobre filmes e imagens em movimento

"Eu em movimento" pro RioEtc. Já viu? 
(pra votar em mim, basta dar "like" ou comentar no post)

Admito que ficou um clima meio terror. Curioso isso. Tudo que fiz em vídeo, nos idos tempos de modelo, era totalmente dirigido. Eu era um mero peão branco embolado em panos e atitudes pré-estabelecidas -- a persona dos criadores. Nesse vídeo, sou eu mesma. Meio lúgubre, meio assustadora, de aparência duvidável, mas sou eu.
Convites para filmes de terror, estamos aí. Já saquei que não serei a mocinha.


E por falar em terror...

Os americanos correram atrás até a década de 80 pra fazer bons filmes, mas nossos companheiros latinos estão matando a pau nos anos 2000. Não sei se é o idioma, mas os filmes de terror espanhóis são simplesmente assustadores. Outro dia assisti "Los Ojos De Julia", que deu belas chineladas nos yankees e seus remakes vergonhosos. Menção honrosa a versão original de "REC", altamente apavorante.
Aliás, recomendo "Los Ojos De Julia", assim como toda a safra de filmes latinos, não só de terror. "O Segredo Dos Teus Olhos", "Um Conto Chinês", "Medianeiras". Pode ir na fé.
É com muito orgulho que volto para as aulas de espanhol.

Ontem, já em solo baiano, fizemos a tentativa de assistir "Suspiria", de Dario Argento, o mestre do giallo -- como eu amo falar giallo, literalmente "amarelo"os filmes de serial-killers italianos -- mas foi uma tarefa difícil tarde da noite pois o filme era todo falado em italiano e a legenda em francês. Ou seja, fiquei com taquicardia. Mas não desistirei.
Uma coisa maravilhosa do Argento é que as trilhas dos filmes dele -- absolutamente maravilhosas -- são feitas por uma banda de rock progressivo italiano chamada Goblin. Vale muito a pena baixar os discos e ouvir em casa. Comece por "Suspiria", que é lindo. A arte dos discos também é incrível, assim como a dos filmes. Quem disser que é cafona eu jogo um copo de vinho na cara, bem dramática.

Engraçado que, enquanto eu estava na sala da casa da falecida avó do meu cônjuge, aqui em Salvador, escrevia sobre coisas felizes. Mas para entrar na internet, precisei ir até o antigo escritório do avô.
Não há nenhuma dúvida de que o ambiente aqui é antiquíssimo. Se vivos, ambos teriam mais que 100 anos de idade, e a casa permanece tal qual deixaram e como sempre foi.
Na escrivaninha com pés de madeira grossíssimos, me encara um porta-retrato com a avó muito nova, sorrindo, um exemplar da "Divina Comédia" de Dante que data de 1400 e um azulejo pintado com a seguinte frase: "Signore Benedici, chi non mi fa perder tempo".
Essa casa seria um ótimo cenário de filme de terror, embora a energia seja boa demais para assombrações. Não que eu não escute a madeira estalar de madrugada, e por vezes sei que não estou sozinha -- mas alguém em algum momento de fato está?

Talvez venha daí meu costume de pedir licença quando entro.
Talvez por isso eu não posso ser a mocinha do filme de terror.


16/01/2012

Homens & Elefantes

Alguns escritores causaram verdadeiros alvoroços na minha vida: Anais Nin, Kerouac, Kundera, Herman Melville -- por aí vai. Mas o grande tsunami continua se chamando José Saramago.
Se alguém dissesse que minha krakatoa engolidora seria um português comunista e ateu, eu rolaria os olhos pra cima com arrogância. Me sinto como a garota que se apaixona pela besta-fera e diz que simplesmente aconteceu. Eu li e simplesmente aconteceu, e paixão de leitor não se mete a colher nem se busca compreensão.

Eu AMO José Saramago. Estivemos juntos apenas uma vez, mas foi suficiente. Só li um livro, e o tsunami veio tão forte que ainda não tive coragem de ler outro. Mas talvez a coragem tenha batido; ontem reuni ousadia suficiente para assistir "José y Pilar", outra situação da qual fugia. Acreditei que meu pobre coração não agüentaria vê-lo no leito de morte, despedindo-se da vida e do grande amor de sua vida. Enquanto datilografava um conto (até o momento batizado de Formigas Azuis), abri uma budweiser geladíssima (meu novo amor em forma de cerveja), e como uma ordem silenciosa, dei play no filme.
Não achei legendas e meu espanhol é fraco, de modo que só pude me aliar ao português de Portugal. Usei bastante da licença poética de babel pra compreender tudo, mas acho que rolou. Tirando o fato de que chorei aquele choro que enruga a cara -- privilégio de estar totalmente sozinha em casa -- o filme está acima de atribuições positivas e negativas. Não amei, tampouco odiei; não achei maravilhoso ou genial, nem o oposto disso. Saramago me provoca uma anestesia rápida, como xilocaína, obriga o silêncio. Difícil ler alguma coisa dele e sair tagarelando ou rindo. Foi como quando terminei "Ensaio Sobre a Cegueira". Não consegui me comunicar logo após fechar o livro. Sabia que as frases eram, de fato, lindas, mas a história me embrulhou de tal forma que não era possível verbalizar as palavras "bom" ou "ruim", ou até mesmo "gostei". Foi um soco tão poderoso que afrouxou os parafusos do que havia de mais bem guardado em mim. Custou um ano pra ler o livro inteiro, pelo caminho encontrei vários desistentes. Finalizei-o na Bahia, dentro do quarto, chorando rios e rios. Foi a primeira vez que chorei lendo um livro -- ou que me permiti chorar. A verdade é que depois de "Ensaio...", me permiti muitas coisas.

Entrei em depressão logo depois, tinha uns 19 anos.

Minha mãe me acompanhou nas visitas a diferentes psiquiatras, e na sua ingenuidade de mãe, dizia "ela ficou assim depois que leu aquele livro". Isso não é totalmente mentira. "Ensaio Sobre A Cegueira" foi o marco de uma fase muito difícil e importante -- seu papel foi permitir o deságue.
Essa é a importância de um livro na vida de alguém. Não há nada mais libertador do que um livro.


Daqui a dois dias, embarco pra Bahia novamente... onde tudo começou há vários anos atrás.
Não estou de férias, pelo contrário: não tenho mais férias. Todo dia é dia de trabalho. Meu ritmo é lento pro que amo fazer, descobri recentemente. Mas me apoiei no Saramago, que escrevia apenas duas páginas por dia. E do Leonard Cohen, que demorava um ano pra fazer uma música. Meus sábios senhorezinhos, ídolos, que me acompanham na jornada.
Em Salvador, vou me conectar com a parte Africana de mim, que é bem espaçosa apesar da brancura. Lá sempre escrevo em dobro, o que é maravilhoso. Me sinto em casa -- uma casa fora da gente que a gente busca, um pedaço do mundo que está contido na nossa alma.
Na bagagem,  "A Viagem Do Elefante", de José Saramago. O livro que ele escrevia enquanto voltou a vida, por pouco tempo mas a tempo de finalizá-lo.

Todo mundo tem um animal de poder. Pra descobrir, deve-se bater o tambor.
O meu acredito que seja um elefante. E como o elefante, resisto ao caminho duro e lento servindo de sombra aos que necessitam. 

11/01/2012

Aniversário acontece todo ano

Hoje é meu aniversário de 24 anos.
Além do calendário cristão, também é meu aniversário de ciclo astrológico. Quando digo que sou uma tartaruga é a pura verdade: meu ciclo é de 12 anos. É uma duração longa, de modo que o meu desenrole é devagar devagarinho. A cabeça funciona a mil mas a fala é lenta, a concretização é lenta, tudo é meio lento. Faço muito vou-e-volto até de fato ir, mas quando vou, viro. Hoje não é somente mais um ano, mas o início de um novo ciclo, o marco zero, e o quão doido isso é, só eu sei. Só eu sinto o que vivo agora.

Dizem que a vida é uma só, que só se vive uma vez, entre outras coisas reducionistas. Eu discordo. A vida é um milhão, e é por isso que a gente tem que se revirar inteiro. Cada dia é uma vida diferente, cada dia você se depara com as mesmas questões, mas não se engane: o universo exige que se faça diferente. A cada dia você se depara com as pessoas a sua volta reagindo da mesma forma, e isso deve ser um duplo incentivo para fazer diferente. Temos que tomar propriedade da nossa própria repetição, pois essa é a dinâmica que existe. Todos são uma repetição de seus pais, e depois de si mesmos, exaustivamente até a morte. A vida não é uma só. A vida contém milhões de vidas, você contém milhões de vidas que vieram antes de você. A nossa linha do tempo é totalmente fragmentada. Temos muitas mortes dentro de uma vida, mortes altamente pessoais. Quem não tem a capacidade de se deixar morrer quando for a hora acaba levando quem está em volta. Tudo tem sua hora, então deixe morrer.
Talvez pela lentidão do meu ciclo, tenho muito tempo para contemplar a morte das coisas. Definitivamente não tenho medo da morte.

Meu ciclo pede paciência e amor -- com os outros e comigo mesma.
Paciência para encarar o sonho de uma vida, uma década de expectativa. Amor pra curar o pavor e tornar tudo menos rígido. Amor pelo que faço, mas um amor leve.
Paciência para aguentar um dia inteiro em casa, escrevendo. É a segunda vez que tento, que largo tudo. Só pode ser assim. A lentidão me impede de fazer duas coisas ao mesmo tempo, é escrever ou nada.

Que loucura é o caminho da tartaruga!
Que loucura é o nosso caminho!

As vezes preciso de uma ajuda... e já tem tempo que ela não aparece. Mardulce, a gêmea de cabeça pra baixo na carta de baralho. Mardulce não sabe fazer conta nem falar no telefone. Gosta só de se divertir. Não tem responsabilidade nenhuma. Mardulce é a carta zero do meu tarot interno. Mardulce é o Louco, o marco zero.
Morri de saudades de Mardulce! Escrevi o nome dela na parede do escritório, pra ver se vinha. Veio! O número dela em cima da cabeça, flutuando.

Todos nascemos como o Louco do Tarot, e é ele quem puxa todas as outras cartas. Ele é que faz andar. Abra a porta pro Louco de tempos em tempos. Se ele não vier, chame.

Mardulce vai tomar um banho de água salgada. Começa a sair um solzinho e o céu vai ficando azul. Obrigada, deuses!

10/01/2012

O BOM, O MAU E O FEIO (conto)

É possível saber se um filme é ruim apenas pela sonoplastia dos passos – a percussão das botas de couro num chão de madeira é única. As botas daquele homem abriam graves e evoluíam para um estalido agudo, como quem pisa em poças. Ele gostava do barulho, de modo que usar as botas tornava-se ainda mais agradável.

Escolheu o maior caminho pela sala escura até a pequena mesinha de madeira e envolveu uma minúscula xícara de café em suas mãos gigantes. Entornou-a de uma só vez. Estilo cowboy, sem açúcar, gorgolejando. A percussão do líquido preto em suas cordas vocais era único. Valia o gosto amargo do café.
Todo homem possui sua trilha sonora. Os movimentos de toda uma vida são sincronizados de acordo com essa melodia. O grande segredo é descobrir a música de cada pessoa.

A dele era “The Good, The Bad and The Ugly”.


Na outra extremidade da sala, uma grande mesa de madeira exibia cactos enfileirados. O homem havia resolvido colocar algumas plantas no opressivo cômodo de madeira para que não ficasse mais tão opressivo. Ele gostava da escuridão, mas sabia que para o bem de sua própria saúde, não deveria gostar tanto. Escolheu cactos pois eram fáceis de cuidar. Não precisavam ser regados, e quando morriam, jazia só o esqueleto. Eram plantas de morte imperceptível, as verdadeiras múmias da natureza. O único cuidado necessário era tomar um pouco de ar pela manhã. Não precisavam nem do contato direto com o sol, apenas a claridade de uma janela aberta.

Um dia, as botas do homem irromperam em pausa dramática: todos os cactos estavam caídos ao chão. A terra vomitada nas tábuas de madeira. Vasos entornados, alguns quebrados. Raízes escancaradas. Só podia ter sido o vento, a porra da janela aberta. Seria possível que nada está a salvo?, protestou em silêncio. Foi tomado por um sentimento indescritível de amargura, não compatível ao café nem a nada que tivesse se obrigado a provar. Sentiu-se impotente. Sentiu-se minúsculo. Ficou ouvindo o som singular das botas de cowboy roçando a terra na tábua de madeira.

Abaixou-se e, com as mãos, recolheu a terra do chão e a distribuiu entre os cactos, misturando-os. Alguns morreram, mas jaziam imperceptíveis, mumificados. 

09/01/2012

BEGÔNIA SUPER STAR (conto)

Genivaldo usava colete verde musgo de pano grosso mesmo no calor. Trabalhava dia e véspera de natal e trabalharia naquele dia 31 até o último cliente, e no dia seguinte meio período -- dia primeiro de um ano igual. Genivaldo era vendedor do quiosque de flores da Aníbal de Mendonça com Visconde de Pirajá. De segunda a sábado, de 9 as 19h, feriados, natais, últimos e primeiros dias de novos anos iguais. Mesmo no auge do calor carioca, recusava-se a cortar os longos cabelos lisos, que prendia num boné, vestia o colete verde musgo de pano grosso e vendia flores caras a homens que só compreendiam o desejo imediato de suas mulheres. 
Orquídeas estavam em alta naquele verão. O patrão de Genivaldo havia descoberto um novo fornecedor e o quiosque tinha a maior variedade do bairro -- até aquelas que parecem de mentira, em azuis de aquarela ou roxas com amarelo. Genivaldo compreendia as orquídeas, mas preferia as bromélias; grandes, pontudas e coloridas, como a explosão de fogos da árvore da Lagoa ou do reveillon de Copacabana, só que saindo de um caule verde comprido.

Toda semana, o mordomo de uma senhora da Vieira Souto ia ao quiosque comprar um girassol gigante. A senhora amava girassóis, mas não tinha muito jeito com plantas ou coisas vivas, e pro fim da semana lá ia o mordomo substituí-lo. Genivaldo se perguntava se ela também matava outras coisas, ou se alguém nesse mundo acreditaria na imortalidade de um girassol. "O Brasil já era gigante, que dirá o mundo", pensava. 
Quando veio ainda pequeno da Paraíba, conheceu um pedaço dessa imensidão. O pai, Genésio, degolou um homem e saiu fugido e jurado de lá, deixando mulher e filho. Foi pro Rio de Janeiro, arranjou emprego de pedreiro, economizou o dinheiro do ônibus e mandou pra Mãezinha, que veio com bebê Genivaldo debaixo do braço. Esse nem pagou passagem, de tão miúdo. A sucata da linha Estrela Brilhante cruzou Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo até o Rio. O barraco de Genésio ficava na maior favela do país, um mirante superpopuloso no bairro de São Conrado, onde muitos nordestinos fincaram suas enxadas. Quando Mãezinha chegou, Genésio já tinha casado de novo e feito outro filho pequeno um ano mais novo que Genivaldo, batizado Geniclei. E como a família nordestina é um mistério, as duas mulheres e quatro crianças viviam debaixo da mesma laje, e conviviam bem. Todo mundo tinha emprego e tomava café-da-manhã junto. 
A prosa correu bem até os 13 anos do mais velho e 12 do menor. Geniclei, que a vida inteira teve Genivaldo como herói, passou a bradar dentro de casa, "É viado!". E a cada vez que bradava, os dois apanhavam de chinela de couro. "Calúnia, abestado! Aqui não se fala essa palavra!". Mas a dor não continha Geniclei, e os gritos enchiam o cômodo num crescendo. Um dia, aos 18 anos, Genivaldo pôs-se de pé, mão na cintura, e berrou: "Sou viado sim!".
"Então meta o pé senão lhe degolo", respondeu o pai. 
"Num falei? É viado sim, sempre foi viado". "Cala a boca, abestado", e meteu-lhe a chinela de couro.
Genivaldo bateu a porta e foi embora. Nunca mais voltou. Cinco anos depois, meteu os longos cabelos lisos dentro de um boné, vestiu o colete grosso verde-musgo do quiosque da Aníbal e passou a atender senhores incompreendidos. 

"O girassol", apontava o mordomo. Era sempre a mesma coisa. Nunca perguntava o nome de Genivaldo, nem dava abertura para conversa. Pagava sempre em dinheiro. Era um homem interessante, o mordomo. Mulato claro, olho cor de mel. Debaixo da camisa de linho fechada até o colarinho, dava pra traçar a curva do ombro musculoso. Tinha uns 38, no máximo. A postura era impecável. Como o diabo era bonito. Ainda mais vestido daquele jeito. Genivaldo ficava todo ouriçado quando ele chegava, mas não dava pinta. Aprendeu que viado é degolado, e com as mãos gigantes do mordomo seria fácil. Mas dessa vez, antes de completar a semana, volta o diabo claro. "O girassol morreu antes. Fez menos de 7 dias. Tu me vendeu diferente? O outro não durava menos que isso". 
Genivaldo não sabia o que dizer. Devia ser culpa da assassina de girassóis. A planta era a mesma. Não queria parecer burro nem destratar a senhora, afinal, ela era cliente fiel -- ainda que não soubesse. "Vou te dar um que vai durar duas semanas", disse Genivaldo, num arremedo. 
"E isso sai quanto?"
"Sai nada. Esse é brinde. E se o próximo durar menos que duas semanas, também sai de graça".
O mordomo não se convenceu, mas pegou o vaso de sobrancelha erguida e saiu atravessando a rua. Genivaldo respirou fundo e, sorrindo, pegou o borrifador -- precisava refrescar as rosas e o dia estava quente. 

Duas semanas depois, o mordomo retorna. 
"Aconteceu mesmo! O girassol durou duas semanas! Quero outro desse!"
"Outro desse não tem"
"Como não tem?!"
Genivaldo percebeu que tinha o controle do diabo claro. "É que esse adubo sou eu que faço, e não consigo fazer sozinho. O camarada que me ajuda não tá mais aqui. Preciso de ajuda pra fazer", e emendou no que já sabia deixar o mordomo louco,  "Mas ó, tem outro, daquele normal, que dura só uma semana. Esse você pode levar agora mesmo".
"Não, não, quero do outro! Esse aí morre cada vez mais rápido!", o mordomo se afobou. "E se eu ajudar? Eu posso ajudar. Saio da senhora hoje as 21h. Aí venho aqui e te ajudo. Preciso poupar dinheiro. Serve eu ajudar?!"
"Serve, só preciso de alguém pra triturar e misturar tudo". E com esses braços fortes, pensou Genivaldo, dando um suspiro.

No barraco onde as duas mulheres criavam suas crianças, a vida era calma. 
Enquanto Genésio, que tinha dois empregos, e a mãe de Geniclei saíam com o filho mais novo as 6h da manhã, Mãezinha só pegava no serviço as 11h. De barraco vazio, Mãezinha botava bebê Genivaldo na cama onde dormiam os três adultos e ia tomar banho. Repetia o ritual diariamente, e bebê Genivaldo, com vista para o chuveiro improvisado, observava quietinho. Desde muito cedo compreendia a importância daquele momento, embora apenas anos depois fosse de fato compreendê-lo. 
Mãezinha, dividindo o marido com outra mulher, aprendeu que paz e desejo andam juntos. Nordestina cheia de mandinga, não dava ponto sem nó. Sob o olhar curioso do filho, ficava nuazinha, sem brinco nem grampo. Entoava a canção de Santa Lurdinha dos Evoés e tirava da bolsa uma dobradura de jornal. Puxava um balde raso debaixo da cama, enchia d'água e abria delicadamente a dobradura, revelando o conteúdo de lindas e perfumadas begônias cor-de-rosa. Desfazia as flores no balde d'água, cantando. Depois, com a lentidão da solenidade, virava um pouco da água de begônia na cabeça. As pétalas que grudavam no rosto, botava na boca e engolia. Pegava mais algumas e passava nos dentes, lábios e cílios. Entoando sem parar a canção de Santa Lurdinha, com voz aguda e cheia de sotaque, pegava mais pétalas e passava lentamente no bico dos seios e no ventre. Mais um punhado e levava a vagina, passando por dentro e por fora. Selecionava cuidadosamente uma pétala inteira, grande e resistente, e descia pelas nádegas -- a parte mais demorada do ritual. Chegava a repetir a música duas ou três vezes enquanto a grande pétala de begônia passeava lentamente por seu ânus. Por fim, virava o balde até a última gota, e as pétalas remanescentes eram esfregadas atrás dos joelhos, axilas e orelhas. 
Bebê Genivaldo primeiro tinha medo, depois achava lindo de ver. Mãezinha morena jambo, na luz escura das paredes de cimento do barraco, nua nua, o peito pequeno de mamilos grandes, as pernas bem torneadas, pele vestida de flor, cheiro de begônia -- cheiro de mãe. Quando acabava, paz e silêncio. Foi assim até o dia que bateu a porta e nunca mais voltou.
Mãezinha enlouquecia os homens, e não era só o pai Genésio. Nunca usou perfume nem sutiã -- seu único amuleto era o banho de begônia. E quando o pai chegava em casa, meia-noite, louco de cansado, jogava uns trocados pra mãe de Geniclei e mandava levar as crianças pra tomar refrigerante. Botava-os porta afora, apressado, e da rua se ouviam as risadas. 
De filho, Mãezinha só teve Genivaldo. Nunca engravidou de outra criança nem deitou filho nenhum naquela vida.

Genivaldo observava as begônias do quiosque. Pendurou o colete atrás da porta, meteu um vaso na mochila e saiu. Correu pra casa, entrou no chuveiro e entoou Santa Lurdinha. Achou por bem trocar o boné antes de sair.
21h, já de volta ao local, deixou só a porta aberta. O mordomo deu dois toques anunciatórios e saiu entrando, calça, sapato social e regata branca. O braço, que segurava o cabide por trás do ombro com o blusão de linho do uniforme, era mais forte do que Genivaldo havia imaginado. "Ai, minha Santa Lurdinha dos Evoés". 
Pousou o cabide na cadeira. "Então, como que faz o negócio aí?"
Genivaldo, que de alquimista não tinha nada, improvisou. Pegou um vaso pequeno e recolheu alguns saquinhos de sementes germinadas. Pediu pro mordomo botar o triturador em cima da mesa, coisa que ninguém jamais fazia, por peso e preguiça. "Cuidado aí", advertência sem resposta. Pediu que abrisse o saco de terra e de adubo. Em seguida, triturou as sementes e jogou no vaso. "Meus braços não são fortes, não consigo mexer", e deu uma pá pequena na mão do mordomo. A cada volta de braço que dava, roçava no ombro de Genivaldo. Ficaram nessa uns quinze minutos, e o mordomo começava a inquietar-se. "Demora tudo isso?". Genivaldo então, pressentindo o momento final, tirou do bolso um pequeno saquinho de pó branco triturado. "Isso aqui é um fortificante, segredo meu. Agora, segredo nosso", e derramou aspirina triturada naquele adubo, técnica que aprendeu quando ia entregar flores em sets de filmagem. "Pronto, acabou", disse enquanto invocava Santa Lurdinha. O mordomo olhou pra ele com brutalidade, pá em riste, e perguntou: "Tu é viado, é?". "Sou sim", disse Genivaldo, "Mas sou filho de degolador também". 
O mordomo largou a pá e agarrou Genivaldo com os dois braços, com a força do coveiro que levanta terra pra enterrar defunto. E no fluxo das intimidades, tirou-lhe o boné, libertando seus longos cabelos lisos.

Minutos depois, um rasgo de luz artificial invade o quiosque. A porta aberta revela o filho do dono acompanhado de uma quenga, que deu um grito. "Mas que porra é essa???". Abotoaram as calças, em choque. 
"Que porra é essa?! Que porra é essa aqui?!!! Quem é você?!?!".
O mordomo pegou o uniforme e fugiu, quase derrubando a quenga. Só ficou Genivaldo, com cara de prazer e susto. 
"Aí Genivaldo… Tu é viado?".
"Sou", respondeu. "Sou sim."
"Então vaza daqui, viado! Que nojo. Que nojo!!", e saiu puxando a quenga. Genivaldo ainda ouviu a mulher falar, baixinho, voz ventando longe, "Então a gente não vai mais trepar com cheiro de flor?".

Sem emprego, Genivaldo chorou e rezou pra Mãezinha, já falecida. Mãezinha adorava ter filho viado. Quando morreu, deixou tudo pra ele. Eram do mesmo tamanho, pé e manequim. Os chinelos serviam, assim como as casacas e calças de algodão. Mas ele gostava mesmo era dos vestidos. 
Genivaldo abriu o armário e enfiou o nariz nos vestidos dela. Cheiro de begônia. Cheiro de mãe. Começou a cantar uma música da Marisa Monte. Amava Marisa Monte. Viu uma foto dela na revista com um monte de flor no cabelo e na roupa. Que linda era Marisa Monte. Na verdade era feia, mas tinha a voz tão bonita que ficava linda.
Quando estava muito triste ou muito feliz, gostava de cantar Marisa Monte enquanto abria o estojo de maquiagem da mãe. Ligou a lâmpada do espelho e começou a traçar uma boca vermelha. Passou o corretivo, depois a sombra turquesa com prateado. Mirou-se. No espelho, um ser dismórfico, meio monstro. Não era Genivaldo, embora tivesse um Genivaldo ali. Suspirou. Algo reluzia na gaveta, ricocheteava na lâmpada. Uma lâmina, meio velha. Será que funcionava?
Pegou a lâmina e olhou bem pra ela. Teria coragem? Sim, teria. E num ato heróico, raspou fora as sobrancelhas. 
Mirou-se novamente. Recriou-as com dois riscos negros curvadíssimos. Descobriu os olhos realmente puxados. "Bem que todo mundo dizia". Aplicou delineador e cílios postiços. Não foi necessário fazer a barba. Pêlo, sempre teve pouco. Viado de sorte.
Olhou os vestidos pendurados e tirou o vermelho justíssimo de helanca e paetês. Vestido de gala. Vestiu. Lindo. E como era fresco, decotado. "Só falta o busto!". Tirou da gaveta o sutiã lilás das ocasiões especiais de Mãezinha e encheu com um pouco de algodão. Não queria que ficasse grande. Médio pra pequeno, que nem o da mãe -- e o da Marisa Monte. Enfiou o pé na sandália prateada de salto quadrado. Mas ainda não estava pronto. 
Não era mais Genivaldo, nem Genivaldo de Mãezinha. Penteou os cabelos pra frente, esqueceu-se como eram compridos. Pegou a lâmina e degolou os cabelos perto da raiz. Fez uma franja desfiada e pontuda. Pegou as flores de begônia e fez no cabelo o maior arranjo que já viu. 

No dia primeiro de todo ano igual, o comércio abria meio período. As noites eram iguais as noites dos anos que passaram. As ruas da Lapa continuavam cheias. Genivaldo desfilava pela calçada do Lavradio e as mulheres viravam para olhar seus lindos cabelos floridos. Os homens passeavam os olhos no seu corpo magro e chamativo embrulhado em tecido vermelho reluzente. Virando ali, no Buraco da Lacraia, viu de longe o pisca-pisca do karaokê. 
Na entrada, o porteiro, comanda na mão, olhou Genivaldo de cima a baixo. "Veio fazer show?"
"Como?"
"Veio fazer show. Aqui. Hoje. Você não é o traveco do show?"
"Não sou traveco não"
"Tu é o que então?"
Pausa.
"Sou cantora"
"Cantora?"
"É. Cantora. Meu nome é Begônia Super Star"

O porteiro anotou o nome na comanda, e ao lado escreveu em letras garrafais: CORTESIA.

08/01/2012

PRIMEIRO POST DE 2012

Deletei todo o meu arquivo. 
E não doeu.

Refleti muito durante esses últimos e primeiros dias. Mais do que nunca tenho a convicção de que as coisas mudaram. Logo, o motivo desse blog precisa mudar. Aqui não é mais a fuga de uma vida forçada, o recanto da frustração adolescence. Já provei pra mim mesma que posso escrever. Se tive o culhão de largar tudo pra me profissionalizar como escritora, preciso fazê-lo de fato. Não me serve mais o tom confessional em primeira pessoa, até porque ele só era mantido por conta desse blog. Toda minha produção de texto está muito distante disso. Tenho um montinho virtual de contos armazenados, e é isso que vai ser postado agora. Então, adeus cotidiano, alô literatura -- se é que já posso chamar assim.

Aos que chegam, sejam bem-vindos. Vocês chegaram numa hora ótima. Esse é o funeral do hobby e o nascimento do trabalho sério.


P.S.: Se você gostava das reflexões, textos sobre tarot, filmes, livros etc, tudo isso continua! :-)